Quem nunca viu uma mulher ser ofendida na rua por “cantadas” grosseiras? Quantas mulheres já lutaram para fugir de uma carícia forçada dentro de uma casa noturna ou no transporte público? O que pensar sobre namorados que se dizem “zelosos” para justificar atitudes obsessivas, como controlar os passos da companheira até fazê-la se sentir sufocada? Qual é o número de jovens que sofrem abusos caladas? Atire a primeira pedra quem nunca ouviu falar sobre o marido agressivo de alguma conhecida... A lista de casos abomináveis é longa e ainda inclui estupros que acontecem à luz do dia em banheiros químicos, hospitais, estradas, ônibus e na ida ou na volta do trabalho.
Por que toleramos atos de selvageria que mais parecem coisa do tempo das cavernas, sem denunciá-los? A explicação pode estar na própria sociedade. O grande número de ataques mostra que o Brasil carrega uma cultura marcada pelo desrespeito. A ideia perversa de que a mulher é um mero objeto sexual à disposição do homem tem sido espalhada em propagandas de televisão e nas ruas. A desvalorização feminina aparece em músicas com letras indecentes e em escândalos de “celebridades” que estampam capas de revistas.
Com esses exemplos, a sociedade passa a ver como natural o comportamento desrespeitoso do homem para com a mulher e até mesmo da mulher para com outras mulheres. Muitas mães incentivam seus filhos a tratarem suas namoradas como objeto, por exemplo. Muitas moças se permitem ser usadas e tratadas como um pedaço de carne no açougue.
O desrespeito à mulher também pode estar dentro da sua casa, leitor. Parece absurdo, mas infelizmente muitos lares estão perdendo valores fundamentais. O resultado é uma sociedade agressiva, que forma futuros adultos com base na intolerância e na crença da suposta superioridade masculina. Quando, por exemplo, uma criança vê o pai batendo na mãe, ela pode crescer acreditando que a violência é normal. Existem pais que ensinam os filhos a “pegar” o maior número de mulheres possível para que eles sejam “garanhões”. Enquanto isso, algumas meninas são educadas para acreditar que devem ser pisadas pelos homens, sem questionar, o que inclui atender pedidos descabidos e aguentar desaforos.
Pesquisas confirmam que a situação é alarmante no País. Dez brasileiras foram estupradas por desconhecidos a cada 24 horas, em 2012. De 2009 a 2012, esse tipo de crime cresceu 162%, segundo o Ministério da Saúde. O perigo não se restringe às ruas. Mais de 13 milhões de brasileiras já sofreram algum tipo de agressão, diz levantamento do Senado. Grande parte dos crimes é cometida por pessoas próximas da vítima, como ex-namorados, maridos, irmãos e até o próprio pai.
A onda de violência chama a atenção pela vulnerabilidade a que as mulheres estão expostas. Uma turista norte-americana foi estuprada por três criminosos dentro de uma van no Rio de Janeiro, em março. Ela havia embarcado no transporte coletivo com o namorado francês, com destino à Lapa, mas os dois foram dominados pelos bandidos e passaram horas de terror. Jonathan Froudakis de Souza, Wallace Aparecido Souza Silva, e Carlos Armando Costa dos Santos foram presos. O fato macabro é que, se a polícia tivesse investigado a denúncia feita por outra vítima do bando dias antes, o crime de repercussão internacional poderia ter sido evitado.
As “soluções” encontradas pelas autoridades são ainda mais assustadoras. Algumas parecem até piada. No Rio de Janeiro, a circulação de vans foi proibida na Zona Sul da cidade após o estupro da norte-americana, como se esse tipo de transporte fosse o motivo das agressões sexuais. Já nos metrôs e trens fluminenses, vagões exclusivos para mulheres tentam evitar abusos nas horas de maior movimento, como se estupro tivesse hora e local marcados para ocorrer.
Em vez de enclausurar mulheres em espaços delimitados para protegê-las e deixar estupradores livres para escolher suas vítimas, o combate à violência deveria começar desde cedo. As crianças precisam aprender que estupro e violência doméstica são atitudes inaceitáveis, criminosas e que levam agressores para a cadeia. Como nenhum Estado tem polícia suficiente para garantir a segurança em cada esquina, a melhor saída ainda é educar os cidadãos.
Com média de 37 estupros por dia, São Paulo não fica atrás quando o assunto são ações que não atacam o problema. A ideia das autoridades para enfrentar esse crime é analisar o perfil dos estupradores e lançar uma cartilha para orientar mulheres sobre como agir para evitar abusos, trabalho que deve ser feito pela Secretaria da Segurança Pública em parceria com o Conselho Estadual da Condição Feminina. A saída está em colocar sobre a vítima a responsabilidade de fugir de seu algoz, ou em educar os homens (e mulheres) a respeitar o semelhante? Enquanto a cartilha não sai, os paulistas torcem para que casos como o da psicóloga que foi violentada na região da Marginal do Rio Tietê, após o carro quebrar, não se repitam. Adriano Sobral da Silva, de 30 anos, que se aproximou da vítima dizendo que era mecânico, foi identificado e preso.
A Câmara dos Deputados também provocou revolta em boa parcela da população ao propor um benefício mensal, equivalente a um salário mínimo, às crianças concebidas após um estupro. O Estatuto do Nascituro (PL 478/2007) foi aprovado no último dia 5, pela Comissão de Finanças e Tributação. Apelidada de “Bolsa Estupro”, a proposta pode ser um meio de estimular vítimas de agressão a ter o bebê caso fiquem grávidas. O Código Penal brasileiro autoriza o aborto em caso de estupro.
Medo dificulta denúncia
Mais da metade dos casos de violência contra a mulher ocorre após o fim de um relacionamento, diz o Ministério Público de São Paulo. O perfil das vítimas inclui pessoas de todos os níveis socioeconômicos e de escolaridade. Preocupado com a situação, o Ministério criou um guia que ajuda mulheres a identificar se correm risco de sofrer agressões dentro do relacionamento (faça o teste abaixo e veja, no fim desta página, onde procurar ajuda).
Mesmo com os avanços na Lei Maria da Penha, criada em 2006 para proteger as mulheres e aumentar as punições contra a violência doméstica, o medo ainda impede muitas denúncias. A coordenadora nacional do Projeto Raabe, Carlinda Tinoco Cis, conta que o trauma psicológico pode levar a vítima a ficar calada durante anos. “Muitas mulheres foram abusadas ainda na infância, outras sofrem agressões do marido. A autoestima da pessoa fica afetada, ela se sente culpada, tem vergonha, sentimentos negativos, depressão e carrega dentro de si muito sofrimento”, explica. O Projeto Raabe atende mulheres que sofreram violência doméstica, além de agressões sexuais, físicas, psicológicas, morais ou patrimoniais.
Romper o silêncio é um dos passos importantes para quebrar o ciclo de agressões. “A Lei Maria da Penha protege a mulher, o telefone 180 aceita denúncia anônima. No Projeto Raabe nós também fazemos o resgate da autoestima, valorizamos a mulher. Procurar ajuda é fundamental para seguir em frente”, conclui Carlinda.
O que é estupro? Quais são as penas?
Carícias forçadas, beijo roubado e gestos que causem constrangimento podem ser enquadrados como estupro no Brasil. Fazer sexo com uma pessoa embriagada também. Desde 2009, a Lei nº 12.015 ampliou o conceito e endureceu as penas para esse crime.
“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” pode levar à pena de 6 a 10 anos de prisão. A pena de reclusão varia de 8 a 12 anos, se a conduta resultar em lesão corporal grave ou se a vítima for menor de 18 ou maior de 14 anos de idade. Se o estupro resultar em morte, a pena varia entre 12 e 30 anos de reclusão.
A lei ainda tornou crime qualquer ato sexual com menores de 14 anos, mesmo com consentimento. É o chamado “estupro de vulnerável”, cuja pena de reclusão é de 8 a 15 anos. Um dos avanços da legislação foi reconhecer que tanto homens quanto mulheres podem ser vítimas de estupro.
Além da Justiça, acusados de estupro enfrentam a fúria dos criminosos. Uma espécie de código informal da criminalidade prevê que estupradores sejam violentados e até mortos caso fiquem juntos com outros presos. Para evitar isso, o acusado de estupro, mesmo em prisão preventiva ou temporária, teria de ficar em isolamento, em cela especial.
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